Que somos nós afinal?

Capítulo 12


Desapego

  

Estranha é a calma que me invade. 
        Serena sensatez sem fundamento, 
                da paz que vem agora, quando é tarde.

Como criança em loja de brinquedos, assim somos nós, fascinados pelas coisas de que podemos usufruir e a certa altura carregamos uma mochila demasiado pesada por tanta tralha acumulada.

A necessidade de sobrevivência, o conforto, a segurança, empurram o ser racional a colecionar bens materiais para assim se sentir protegido de fatores externos, ao ponto de o seu ideal de vida passar a ser o de atingir uma quantidade de bens para não precisar de trabalhar.

Noção errada, porque nada dá mais trabalho e mais preocupação do que ter demasiados bens materiais.

A constante incoerência do ser humano leva-o a enganos permanentes, a ilusões que se vêm a revelar muitas vezes e tarde demais grandes desenganos. 

Não se pode amar a Deus a Mamom e Mamom é o amor incondicional pelos bens materiais de que usufruímos enquanto habitamos o planeta, mas que invariavelmente deixamos, causando demasiado sofrimento na hora do desligamento.

A evolução do ser humano no plano terrestre passa por muitas etapas que lhe vão moldando a personalidade.

De criança a adulto, de adulto a idoso, é um caminho com muitas interações, muitos cruzamentos com os outros e com ele mesmo.

Desses cruzamentos ficam marcas, sentimentos, que podem ser luxo ou lixo. Luxo quando tiramos o melhor de nós e dos outros.

Lixo quando tiramos apenas, o que nos satisfaz à superfície.

O apego às coisas, ás pessoas, aos sentimentos pessoais é das maiores prisões que se podem experimentar no mundo real.

As pessoas sofrem pelos bens que perdem ou tem medo de perder.

As pessoas sofrem pelos filhos e pelos amigos que partem e por qualquer razão deixam de fazer parte das suas vidas.

As pessoas sofrem prisioneiras de sentimentos de que não se conseguem libertar como feridas cravadas na pele.

Trabalhar o desapego é trabalhar o nosso eu mais profundo.

Adoramos a nossa casa, o nosso carro, o nosso dinheiro.

Adoramos os nossos filhos, a nossa família, os nossos amigos...

Adoramos como se adora um qualquer deus.

Não saímos do tempo em que se faziam sacrifícios aos deuses como necessidade de obtenção de graças por coisas que apenas são nossas temporariamente.

Temos medo de perder os outros, ou temos medo que eles nos percam!

Se isso acontece, talvez não tenhamos feito um bom trabalho em nós mesmos: talvez de tão focados em coisas externas esquecemo-nos de crescer, ficamos banais, esquecíveis. 

Vigiar o apego é vigiar e corrigir o nosso egoísmo, a nossa usura, a nossa possessividade.

Tudo que está na nossa vida deve estar para ser usufruído, moderadamente como um elixir precioso que bebemos para promover o nosso crescimento pessoal e a nossa consciência coletiva.

Promover o desapego é crescer em direção ao alto, com a leveza de quem se libertou dos empecilhos do caminho e pode agora subir a montanha da sabedoria.

Os bens ficarão quando partirmos para outro plano.

Os afetos, a família e amigos não são nossos: fizeram parte de nós!

Como um rio, onde as águas nos banham e seguem e outras águas vem e nos banham de novo.

Assim somos, permanentes na mudança; assimilando, desapegando… assimilando e desapegando…

Tudo e todos podem passar pelo nosso coração com amor, mas um amor que liberte, não sufoque, não possua, porque cada coisa e cada criatura só é de si mesma.

Desapegar é por isso muito difícil, toda uma ciência de coragem.

Tomada a consciência da nossa possessão, é um caminho que nos leva mais além na nossa evolução como seres espiritualizados.

Somos matéria, amamos o nosso corpo!

Há quem se adule, quem se venere porque se acha ícone de beleza, referência para outros com os mesmos valores.

Devemos amar o nosso corpo sim, cuidar dele, preservar para que a doença não entre, que não seja motivo de escândalo.

Mas também lembrar que ele é apenas a roupagem que veste o que somos verdadeiramente: um espírito e esse sim é que nos deve preocupar para que seja belo, porque é eterno e irá connosco para todo o lado, enquanto o corpo ficará na terra a desfazer-se em pó. 

Observa-se em muitas pessoas o quanto é doloroso, na hora da morte o desapego do corpo e das coisas materiais.

A frustração e a raiva por perder o poder sobre as “suas coisas”.

São momentos de muita dureza para quem só conheceu termos como: “meu, tenho, sou”.

Quando percebem que já não tem, nem são, o coração enegrece e sem tempo para mudar saem do plano terreno cheios de amargura e desilusão, quando são eles os únicos culpados.

O desapego é todo um aprendizado que vai do homem ao anjo.

Desapegamos das coisas, dos outros, dos nossos sentimentos e num estado já muito evoluído, nem a identidade que tivermos na terra é relevante.

Não interessa quem fomos ou somos, importantes ou não.

Apenas o grau de aprimoramento que o nosso Eu atingiu, enquanto habitamos um corpo ou vários, conta no final.

Difícil perceber essa grandeza de alma porque o nosso estágio evolutivo ainda dá os primeiros passos no reino animal, “após ter passado pelo reino mineral e depois pelo vegetal”.

Teoria polémica esta, contestada pela ciência e renegada pela religião, mas entre o que uma quer descobrir e a outra quer encobrir, ambas estão ainda muito longe da verdade que só pertence a Deus, e que só chegará aos homens no tempo certo.

Entre os cientistas que procuraram derrubar barreiras de entendimento sobre quem somos e de onde viemos, Charles Robert Darwin (1809-1882), naturalista inglês, chegou mais longe alegando que o aparecimento do homem foi a culminância de um processo evolutivo que começou em organismos simples, envolvendo o reino vegetal e animal, até atingir a complexidade necessária para que um ser começasse a ensaiar a razão, conquistando a capacidade de dirigir o próprio destino. 

Esta coragem sai cara a todos que, aliando capacidade intelectual e intuição espiritual, desafiam o poder e o conhecimento instituído.

Nas primeiras reações, para além de ter que enfrentar o poder da religião, Darwin passou por herege e perturbado mentalmente.

Entretanto Darwin nunca pretendeu destruir a ideia de Deus, apenas demonstrar que o Criador trabalha de forma diferente do que a nossa vaidade quer acreditar.

Há um tempo para o ser humano aceder ao conhecimento, o tempo certo, o tempo de Deus e hoje a teoria da evolução das espécies é já um paradigma científico.

De destacar ainda que a igreja católica, que tanto combateu a Teoria da Evolução, agora reconhece sua autenticidade, situando a gênese bíblica como uma alegoria que não deve ser tomada ao pé da letra.

Somos seres criados por Deus, colocados nesta escola terrena, cada qual com as suas necessidades de evolução.

Muitos, chegam e partem sem perceber o que vieram cá fazer. Outros vêm a passeio e nada mais fazem que usufruir do que podem, sem assunção de quaisquer responsabilidades.

Alguns vêm para ser adorados como se achando mandatados por Deus.

Poucos, infelizmente poucos ainda, já têm alguma intuição do que o Criador quer da sua criatura.

Aprender o amor, a fraternidade, a solidariedade, são esses os valores.

Essa é a lei da evolução!

É esse aprendizado, o nosso verdadeiro tesouro.

Esse também o tesouro que deixamos para os que ficam e que nos amaram: o nosso exemplo e a nossa mensagem.

Tudo o que de material possuímos será desapropriado e entregue àqueles que se não tiverem elevação, iniciarão o mesmo ciclo de apego e de mágoa no final.

Do plano terreno levamos o nosso espirito, com os registos do que fizemos em prol dos outros e da nossa consciência moral.

Nada na Lei de Deus diz que é errado realizar grandes feitos: errado é não os colocar ao serviço dos demais.

Trabalhar para ter conforto, qualidade de vida, também não é errado: errada é a fascinação que pode exercer sobre nós todo esse status.

Quem nasceu com qualidades para exercer o poder, deve nortear-se pela justiça e equidade, protegendo sempre os mais desfavorecidos.

Aqueles que nascem com atributos intelectuais tem a obrigação moral de os colocar ao serviço da comunidade, para que possam ser partilhados.

Desapegar-se das próprias conquistas intelectuais é aprender a humildade e muitos, fruto do orgulho, achando ser apenas seus os méritos das conquistas cortam o elo da intuição, verdadeiro caminho, para chegar sempre mais além.

Quem se faz vaidoso do seu valor intelectual passa a viver a horizontalidade dos conhecimentos do mundo, deixando de fora a Ciência Divina, que só é revelada aos realmente humildes, que já aprenderam que o homem sem Deus nada sabe e nada é.

São tantos os homens e mulheres que partilharam com humildade os seus conhecimentos.

Outros gratos pelos desempenhos económicos conquistados, souberam alargar horizontes criando postos de trabalho e condições dignas para dar oportunidades ao seu semelhante.

Infelizmente muitos se deixam ofuscar pelo brilho da ribalta e confundem as coisas a partir de certa altura, onde já não distinguem o que é legitimamente seu, ou apenas usufruto.

No final comum a todos, haveremos de prestar contas a Deus dos recursos que d’Ele recebemos, como na Parábola dos Talentos.

Jesus o Mestre dos Mestres permanece como a fonte de todos os exemplos de desapego e de diretrizes para a verdadeira vida, quando nos deixou dito:

“Eu não tenho uma pedra onde assentar a cabeça”.

 


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